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Eternamente Menina

Eternamente Menina

06.01.05

Retalhos de uma vida...


Otília Martel

- Olá!...

Olhei espantada, o sorriso naquele rosto, meio de menina-mulher.

- Não sabe quem sou?

E o sorriso trocista continuava...

De repente lembrei-me: Meu Deus, há quantos anos te não via.

Falámos durante horas... de tudo e de nada...

De repente lembrei-me: um dia escrevera a sua história.

Aqui a deixo  para vós.

atravessando a vida

 

Enquanto tirava as chaves da mala olhei para ela...

Ali parada, direita, cabeça levantada, olhando-me de frente.
Tinha os olhos mais espantosos que alguma vez vira num rosto de criança!
Sorri-lhe e instintivamente perguntei-lhe:

- Esperas alguém?
- A Senhora é a Mãe da... “Maria”? (nome fictício)
- Sim. E tu quem és? Ela não está em casa...

- Eu sei. Está no ginásio. Vim de lá...mas queria falar consigo antes de ela chegar.
O seu olhar permaneceu imperturbável enquanto a chave girava na fechadura.
- Entra...
Afastei-me para lhe dar passagem. O grande espelho da entrada reflectiu-a. Ela não olhou para nada! O olhar sempre fixo, deslumbrantemente parado.
Esperou que eu tirasse o casaco arrumasse as minhas coisas e então disse:
- Desculpe. Não tenho mais ninguém a quem me dirigir...
Olhei o ar sério dela a cabeça erguida com um certo orgulho que me fez sentir que algo grave se passava.
- Não te importas de vir comigo para a cozinha? Tenho que fazer o jantar.
- Com certeza, minha Senhora.
Puxei uma cadeira onde ela se sentou muito direita enquanto endireitava a saia e depois falou numa voz doce, mas segura, como quem não queria perder tempo…
- Eu sou colega de escola da sua filha, ela divide o lanche e o material comigo.
Continuei a descascar as batatas e um pensamento ocorreu-me: “então é isso…o material perdido, a abundância do lanche. É para repartir...”
Mas a voz dela tirou-me da minha reflexão...
-...  e pensei… se a “Maria” me ajuda a Mãe deve ter uma ideia para aquilo que eu deva fazer.
E sem mais demoras, apresentou-me o problema.
O Pai não dava notícias há dois meses, a mãe com os nervos de não saber do pai, tinha tido um ataque e, agora encontrava-se convalescente. A única família que tinha, uns tios, estavam emigrados em França e a avó já era velhota para lhe valer...e ela... ela não tinha idade para ir ao banco levantar o dinheiro que o pai mandava à mãe.
Ouvia-a em silêncio...pousando a faca em cima das cascas...

Mil pensamentos me afloraram...mas a voz calma, continuava...
- Já não tenho nada em casa, para dar de comer à minha mãe e à minha irmãzita e não sei que atitude hei-de tomar, nem que fazer… lembrei-me de vir falar com a Senhora. Queria que me ajudasse até a minha mãe se levantar e poder resolver os problemas...
Virei-me e olhei de frente para ela.
Os olhos estavam brilhantes, do esforço para não chorar e, senti naquela criança, uma dignidade sem limites e uma força de vontade que faria inveja a um adulto.
- Muito bem, respondi. Espera um pouco.
Voltei a vestir o casaco, peguei na carteira e nas chaves.
- Anda...alguma coisa se há-de fazer.
O resto da história contou-a no decorrer da viagem...
Ouvi-a atentamente sem despegar os olhos da estrada.
… a Estrada da Vida que leva muitas vezes a acontecimentos extraordinários.
O que aconteceu depois não é muito importante.
O Pai (pescador de longo percurso) voltou, a Mãe melhorou, pagaram-me (fizeram questão, com muita honradez) o pouco que despendi com eles.

E eu...

Eu..

Fiquei a dever-lhes um dos episódios mais memoráveis da minha Vida... em que uma criança de olhos extraordinariamente belos veio enriquecer o meu coração com a sua sensatez aliada a uma força de carácter e a uma determinação fora do comum.

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