"Os pobres deste mundo…"
Afazeres levaram-me, naquela tarde, a sair de casa a caminho da Cidade.
Ao voltar não resisti ao apelo do mar, estacionei o carro e caminhei, descalça, em direcção às ondas que se espraiavam na areia.
Quando os pés ficaram doridos da frieza do oceano procurei um local para sacudir a areia e calçar-me de novo.
Alessandro Poma
Na rocha a meu lado uma jovem que não teria mais de onze ou doze anitos (pela altura) comia um gelado enquanto falava, em tom baixo, com a senhora que a acompanhava.
Aos pouco as palavras chegaram até mim e o diálogo foi ficando audível.
- "Não estejas triste, Avó. Vai tudo resolver-se" – dizia num tom meigo a jovem.
- "Com o Avô doente, não sei como resolver a situação e não quero incomodar os teus Pais a trabalharem tão longe"- a resposta da senhora num tom triste, chamou-me a atenção.
- "Tive uma ideia, Avó".
- "Come o gelado, Mariana. Temos que nos despachar."
- "Mas não queres ouvir a minha ideia?"
E continuou sem esperar resposta…
- "Lembras-te quando o Avô foi entregar aquele dinheiro que lhe tinham mandado e não era dele? Por o nome dele ser igual ao da outra pessoa? O senhor do banco disse que foi um engano e agradeceu muito, lembras-te? E se nós fossemos falar com ele? Ele podia ajudar-nos a arranjar uma forma de pagarmos isso …"
- "Mariana, despacha-te. Isto não é assuntos para ti!"
- "Oh, Vó... já não sou nenhuma criança. Sei bem que estão nesta situação por estarem a ajudar-nos, ao meu irmão, aos meus Pais e também a mim. Até me pagaste o gelado!"
Mais do que ver senti a senhora sorrir e a sua voz tornou-se mais doce:
- "Mariana, despacha-te. O Avô fica preocupado quando demoramos."
- "Já sei o que vou fazer, Avó! Quando chegarmos a casa vou escrever uma carta ao senhor que escreveu ao Avô a pedir-lhe o dinheiro e dizer-lhe que ele está doente, não trabalha, e que tu e o Avô estão a ajudar os meus Pais a ganharem dinheiro para eu e o meu irmão estudarmos. E vais ver, ele vai ajudar-nos, tenho a certeza!"
- "Não te preocupes…vou eu tratar deste assunto…" – interrompeu-a a Avó dando um suspiro entrecortado num som triste, passando-lhe ternamente a mão pelo cabelo.
Nesta altura da conversa, já calçada, disfarçava, sacudindo repetidamente a areia dos tornozelos. Um nó apertava-me a garganta e quase não conseguia respirar.
Levantei-me e, pela primeira vez, olhei-as de frente.
O ar cansado, mas doce, da Avó e os seus cabelos brancos esvoaçando levemente, contrastavam com a jovem, que lhe segurava a mão: magra, cabelo curto, grandes olhos azuis, olhar decidido.
Olharam ambas para mim quando passei e, não conseguindo desviar o olhar, sorri-lhes.
A jovem fixou-me e retribuiu o sorriso mas nos seus olhos notei-lhes a tristeza e a Avó um pouco ruborizada talvez por sentir que tinha ouvido a conversa, sorriu levemente enquanto dizia – "ai estas crianças gostam de saber tudo".
Olhei a jovem por momentos e respondi baixinho, enquanto lhe passava a mão pelo cabelo sedoso: "que tudo vos corra bem."
Não consegui dizer mais nada e dirigi-me aos degraus que me levaram ao carro onde me sentei a pensar no ocorrido.
De repente e sem qualquer motivo de comparação veio-me à ideia Pelágia Nilovna, do célebre romance de Máximo Gorki, "A Mãe" que já li e reli não sei quantas vezes e a frase final da sua luta:
- "Os pobres deste mundo…"