"Para que não mais aconteçam"…
Recostei-me no cadeirão da secretária e olhei o ecrã onde, nas duas últimas horas, escrevinhara o que me vinha ao pensamento resultado de acontecimentos noticiados e de alguns comentários que tenho lido por essa Web fora.
Por norma não gosto de escrever muito rebuscadamente e, muito menos, aplicando palavras ou frases complicadas mas, de vez em quando, o meu cérebro manda em mim e então os meus dedos cumprem as suas ordens e quando dou conta acabei de escrever um memorando quase pseudo-filosofal que acabo por detestar.
Releio algumas frases e maquinalmente selecciono a página e carrego no delete.
Acabaste de fazer com o teu texto aquilo que o governo deste País está a fazer com uma certa classe dos seus habitantes – penso.
Apagaste-o.
Como eles vos irão apagar a todos. Ao Povo!
Começaram na saúde, na educação, nos empregos, nas pensões, nos vencimentos…
Quando nada restar nem a um funeral decente irão ter direito. Só à vala comum. Eles tiraram-vos tudo. Nada mais vos resta.
Pintura de Vladimir Kush
E recordo o poema de Eduardo Alves da Costa "No Caminho, com Maiakósvki"…
"Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakósvki.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.
Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz:
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio de meu quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas amanhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.
Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma ténue cortina
lançada sobre os arsenais.
Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,
no plantio.
Mas no tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.
Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares,
mas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.
E por temor eu me calo.
Por temor, aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita – MENTIRA!"
Lentamente, factos históricos ocorrem-me.
Falar deles, relembrá-los, posicioná-los, "para que não mais aconteçam", é aquilo que mais se deseja, se diz e escreve, nessas alturas.
"Para que não mais aconteçam"…
Será? Ou a História repete-se?