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Eternamente Menina

Eternamente Menina

01.05.13

Queria escrever um poema


Otília Martel

Queria escrever um poema sobre o dia de hoje.
O sol está fosco nesta rua suja e semi escura.
No vaivém de pessoas, na porta que se abre e fecha com um seco rangido, alheias aos rostos fechados que por si se cruzam, o segurança de olhar vivaço, atento e solícito, estica o braço como um ioiô de menino traquina.
Do lado de fora da porta, no chão, mil beatas esmagadas, intervalo de vício de enfermeiras, bombeiros e acompanhantes dos utentes que, na impaciente espera, ali vêm espairecer.
Ao som da RFM que pela vigésima quinta vez transmite a canção que já sei quase de cor, a espera já não desespera.
Sinto-me privilegiada por conseguir lugar no estacionamento, em frente à porta, e assim aguardar.  
Olho a capa do livro “Os pássaros brancos e outros poemas” de Yeats no banco do passageiro que há-de chegar. Tem sido a minha companhia nestas últimas sessões de tratamento e apesar do tempo decorrido ainda a leitura vai a meio; leio e releio o mesmo poema uma dezena de vezes para melhor compreender a sua essência.  
Há muito quem pense que ler por breve tempo a escrita de alguém é o necessário para conhecer a sua alma.  
Penso o contrário. Por mais que se leia um poeta nunca verdadeiramente deciframos o seu âmago. 
Pego, tristemente, no cartão que marca o último poema lido.  
Lá fiquei sem saber "O que vai na cabeça do menino Manuel" um espectáculo musical a que tive que faltar como, aliás, faltei a muitos outros.  
Gostava, sinceramente, de ter visto esta peça mais não fosse por homenagem ao autor dos textos que admirava muito, o Manuel António de Pina.
Olho a ilustração inserida no cartão e a minha imaginação voa infantilmente.  
São estes momentos de evasão que me dão força para viver a vida tal como se apresenta.  
Um toque no vidro desperta-me.  
O segurança alerta-me que o doente já ali está para o conduzir para o carro. Sorrio agradecida e salto do carro atirando o livro para o banco traseiro.  
Volto ao meu lugar já com o passageiro instalado e rumo ao caminho que me levará de volta a casa e ao meu mar…
Bem… eu só queria escrever um poema sobre este dia e acabei divagando…

Ilustração de Rui Sousa

Ilustração de Rui Sousa

 

  Essa rapariga enlouquecida improvisando a sua música,

A sua poesia, dançando sobre a praia,
Com a alma de si mesmo dividida
Trepando, caindo sem saber aonde,
Escondendo-se entre a carga de um vapor,
De joelhos esfolados, essa rapariga, eu a declaro
Algo de majestoso e belo, ou algo
Perdido heroicamente, heroicamente achado.
Ocorresse o que ocorresse
Ela deixava-se envolver pela desesperada música
E envolvida, envolvida, construía o seu triunfo
Onde os fardos e os cestos não produzem
Qualquer som comum inteligível
Mas cantavam, "Ó faminto mar, mar esfomeado."

"Uma Rapariga Enlouquecida", poema de W. B. Yeats

in pág. 137, "Os Pássaros Brancos e Outros Poemas"

 

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